Obscuridade

Ludibriando a morte

Ludibriando a realidade

Ludibriando as pessoas

Ludibriando a si próprio

 

O único jeito de se existir

É sendo a si próprio

Do próprio jeito

Do próprio ócio

Do ofício

E do opróbrio

 

É sendo o que se é

Que se existe

Que se pensa

Que se se sente

Que se manifesta

 

É pensando em matar que se mata

É pensando em roubar que se rouba

É pensando em se conectar que se conecta

 

Se conecta pelo mundo sendo o que se é

Se conecta com as pessoas certas

Porque é o que se é

Não se existe de outra forma

Porque outra forma não seria possível

O que é possível é a solidão

Até os confins da compreensão

De que não se trata

De nada além de compreensão

 

Que tudo são formas

E que nada é escuridão

📷 Mahdi Rezaei

Tanto faz

É fundamental

Imprescindível

Que as intocáveis lidas da vida

Se tornem acessíveis

 

Quem dera se a soma de tudo

Se igualasse a nada

Como se no universo toda soma e equivalências resultasse em zero

 

Mas não é assim que funciona?

 

Se não se perde energia

Se não se cria energia

Nada se cria

Nada se perde

 

Estamos imersos em um oceano de energia hermeticamente fechado

Termodinamicamente bem pensado

 

Como se alguém, um grande pensador, tivesse criado isso direitinho

E feito uma pegadinha:

 

“Vou colocar aquele povo naquele planetinha e eles não vão saber de nada, nadinha. Mas vão pensar que sabem de tudo, tadinhos”

 

E assim a gente vai engendrando a crença de que há conhecimento

De que existe conhecimento

De que sinapses cerebrais dizem o que somos

E acreditamos

Acreditamos em nós mesmos

Acreditamos que faz sentido

 

Mas faz sentido?

 

Sinapticamente sim

Holisticamente, não

 

Tanto faz uma galáxia, ou você

Tanto faz a estrela, ou você Tanto faz planeta, ou você Tanto faz pessoa, ou você Tanto faz leão, ou você Tanto a erva, ou você Coliforme, ou você Você Tanto faz

Tanto faz

📷 Meghan Schiereck

Sou Tudo

 A observância de tudo

Do mundo

Guia-me para dentro

 

A observância do nada

De mim

Guia-me para fora

 

Porque não estou em mim

Porque estou no mundo

Porque o mundo está em mim

Logo sou o mundo

 

O mundo é tão grande

Eu sou tão pequeno

É porque o mundo sou eu

E não conheço a mim mesmo

 

O mundo é do tamanho da minha mente

A minha mente é do tamanho do mundo

Porque aquilo que conheço (ou seja, nada)

Não passa de passa tempo

 

Não há separação da vida

Exceto aquela que meto

Entre mim e a criação

Entre o Criador e meus medos

 

Não há separação da Criação

Exceto aquela que vejo

Entre meus olhos e meus desejos

Entre o fluir dos mistérios

 

Que escorre pelo tempo entre meus os dedos

Fuga

É fugaz

A vida

A labuta

O arado

O sofrimento predito pelo Arauto

 

Aqui jaz

A morte

A preguiça

O acaso

O desdito na boca do larápio

 

É mordaz

A fome

A nudez

O morgado

Joia preciosa no relicário

 

É sagaz

A dor

A luxúria

O beneplácito

A veste guardada no armário

 

É voraz

O tempo

O consumo

O paráclito

Tânatos nos libera do malgrado

Notívaga Efervescência

O caos se instala em Tróia

Druidas invocam dragões

Atenas se afoga pelo deus

Os bardos entoam canções

 

A lua se move no céu

O Sol se move pela Terra

Nós somos centro de tudo?

A pequenez é tão grande que aterra

 

Se o Cão que ladra no escuro

E o gato se mistura coa’noite

A labuta infame me diz

Que do capataz resta apenas o açoite

 

Os risos soturnos inundam

Os rios do imaginário doentio

Confusos permanecem entoando

 

Os cânticos dos augúrios serpentinos

Com calamitosos calafrios repentinos

As oitavas que supliciam o soprano

Antigamente que era bom

Ninguém morria de infarto

Ninguém tinha depressão

Ninguém tinha fibromialgia

Nem ansiedade, nem convulsão

 

Antigamente que era bom

 

Ninguém morria de alcoolismo

Ninguém tinha Alzheimer

Ninguém tinha Parkinson

Nem TDAH, nem demência

 

Antigamente que era bom

 

Ninguém morria de úlcera

Ninguém tinha artrite

Ninguém tinha rinite

Nem asma, nem bronquite

 

Antigamente que era bom

 

Ninguém morria de nada

Ninguém tinha nada

Ninguém tinha tudo

Ninguém morria, ninguém vivia

 

Antigamente que era bom

 

Todo mundo vivia

Todo mundo morria

 

Antigamente que era bom

 

Experiência

 

Singela é a vida

Que acaba de repente

Solene é a morte

Que permanece eternamente

 

O cântico da suindara

O voo do morcego

O tilintar das cascavéis

Anteveem o seu emprego

 

Se descansamos pouco na vida

Na morte jazeremos

Se sofremos para nos deleitar

Mortos permaneceremos

 

Ao nos deitarmos plenamente

Ao pó então voltamos

E a matéria desfalece

 

Devolvemos à mãe Terra

O que lhe é de direito

Mas a experiência permanece

 

FOTOGRAFIA: NEOM

Sussuros na Escuridão

Os sussurros dos mortos me acordam

Clamam pela energia

Clamam pelo sopro da vida

Que não os anima mais

 

Sentem inveja da minha vida

Das minhas vicissitudes

De todo tempo que desperdiço

Da energia

Da preciosa energia

Que tão facilmente jogo fora

 

Com ela, torno-me um bouquet

Para os mortos

Algo que brilha na escuridão

Um poste de luz ambulante

Para ancorar na imensão

 

Algo no nada

Um pingo de fogo no escuro

 

O escuro afasta os espíritos

Os demônios

Que têm medo do escuro

Afinal, no escuro

Sempre tem algo mais sombrio

 

Aliás...

Há algo mais sombrio que os desejos humanos?

📷  @j.photography2012

Portas Fechadas

Corações são portas

Abertas e fechadas

Abertas e fechadas

Abertas e fechadas

 

Abertas ou fechadas?

 

Pessoas são casas

Abertas e fechadas

Abertas e fechadas

Abertas e fechadas

 

Abertas ou fechadas?

 

As casas são bonitas

Algumas mais cuidadas

Outras nem tanto

O importante é que cada uma

Tem o seu encanto

 

Mas apenas permanecem

Bonitas e conservadas

Quando seus donos

Encantados pela proeza em solo armada

Guardam-nas abertas

Sempre abertas

 

Para que pessoas

Outras casas

Não sempre fechadas

Mas mais sempre abertas

Possam entrar

 

Casas que podem ser preservadas

São casas abertas

E não fechadas

Casas que são vivas

Têm gente dentro

 

Casas que não tem gente morando

Se deterioram com o tempo

 

Por isso que as casas sejam como nossos corações

Que pulsam

Pululam

Sempre abertos

Tudum

Sempre abertos

Tudum

Sempre abertos

 

Abertos

📷 @ScottWebb

O Piano de Doralina

Não entendo

Como seria possível

Desenrolar notas musicais

Sem um aparelho radiofônico plausível

 

Que detestável seria

Se apenas pegássemos as teclas do piano

Sem o piano

E no piano jogássemos gasolina

 

E fogo!

 

O fogo se alastra

Dançando

Brincando, alarmando

Fazendo rir às crianças e os desembaraçados

 

Primeiro o piano

Sim, o piano

Dançando

Sempre dançando ao calor do fogo

 

O piano...

 

Enternece-se, cada vez mais quente

Até chegar em 700 graus

Quando tudo vira pó

E tudo derrete

 

Tudo porque foi um dia

Em que Doralina

Resolveu ter uma conversa mais buliçosa

 

Uma buliçosa e dançante conversa

Que não envolvera Leonel

Seu amigo e legítimo

Coronel

 

Leonel era o homem do ardor

Profundamente masculino

Profundamente rancor

Era puro fogo e ódio

 

Quando descobrira que a buliçosa Doralina

Lina ia buliçando

Dançando ao piano

Ao calor da tormenta

Que tudo derrete

 

Primeiro o piano

Depois o violão

Depois a mesa

 

Depois o carpete

Depois a mobília amadeirada

Depois a Doralina tão atrapalhada

 

Tudo dançava

Tudo gemia

Tudo gritava

Ao som da sinfonia do piano que tudo agasalhava

 

Era tudo um poente

Que tão de repente

Com a chuva se amainou

 

Lá se vai Doralina

Em outra vida

Encontrar seu verdadeiro amor

📷 @lorenzospoleti